quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Retórica de um pedinte

Senhores e senhoras... digo, senhoras e senhores. Perdoe-me a falta de jeito com as palavras, de início. Desculpe-me se alterno sem querer um termo ali ou outro aqui, se ouso derramar algum sentido em uma palavra a qual não possa tê-lo, em suma, essas coisas de principiante. É que sou de origem humilde, tal é a minha história. Posso contar um pouquinho dela, também sobre os tijolos e ferramentas que ajudaram-na a ser construída. Quiçá sobre uma sabedoria só minha, que adquiri mediante muita transpiração e trabalho ardiloso, com algumas "inverdades estratégicas" aqui e acolá, confesso.

Nunca fui trabalhador pai de família, sempre fui um homem perfeitamente saudável. Catar e/ou comer lixo? Jamais! Andarilhei muito pelas ruas, mas nunca tive essa inclinação louca para "sabores tão exóticos", além do mais sempre fui quase de todo preguiçoso, com exceção de alguns instrumentos de trabalho inatos: A boca e o cérebro. Sempre mantive-me com um pensamento semelhante a este: "Morre de fome um homem que não usa a própria boca, e por falta de diligência o que não usa seu cérebro". Era meu "pão de cada desjejum". Sobre isto, hoje percebo como eu era um "Jesus da vida", pois sempre conseguia multiplicar o alimento em três: Café, Almoço e Jantar. Além disso, tinha longas madeixas e barba crescida, "à semelhança do homem". Também eram instrumentos de trabalho. Nunca as pessoas dariam esmolas a um pedinte o qual vissem saudável, limpo, arrumado e polido, não achas? "Que petulância! Que safadeza!", diriam. Mas hoje relevo muito mais o "Que incoerência!". Era um ponto essencial: ser algo o qual justificasse suas ações.

Eu era um pedinte. usava Deus aqui e ali, em agradecimentos, previsões infundadas que mais pareciam travestidas ameaças de má fortuna, justificativas, determinismos, enfim, uma horda de subterfúgios e proselitismos. Mas quer saber? Se eu fosse o próprio Deus daria o alvitre mais sábio de todos aos mendigos, até porque a eles é deveras cabível: "Nascei, crescei, vivei, fingi, sobrevivei!". Para bom mendigo, meio fingimento basta. A arte de "convencer" muitas vezes requer "fingir". Pelo menos foi uma das coisas das quais notei quando há muito passava perto de um espetáculo teatral numa praça. O autor interpretava tão bem um vilão que, para seu infortúnio, interpretou bem demais. Acabou ao final da peça, quando nas reverências protocolares ao público, com um ovo quase do tamanho de uma laranja nos trajes negros, jogado por um espectador irado cuja interpretação doentia assimilou as duas figuras (ator brilhante real e personagem maléfico fictício) numa só e, para azar do atingido, fora a má fictícia. "Que desperdício", pensei "porém não sei se mais de alimento ou de virtude...". Tal experiência lecionou-me uma lição mais subjetiva ainda nessa filosofia de sobrevivência: "Saiba para quem fingir, onde fingir e, regra de/para cobre do/no 'Mendiguês', COMO... fingir".

Não tinha mais de dois "colegas de profissão", mas nos momentos de troça ambos chamavam-me de "pobre fingido", trocadilho que sempre me arrancavam um volátil "heh..." somado a um sorriso tão econômico quanto qualquer desejo que eu pudesse ter de compartilhar minha sabedoria e riqueza com eles. Tinha até uma quantia gorda de moedas e notas num jarro meio quebrado enterrado secretamente ao pé dum pinheiro da praça onde repousava. Nada punha em bancos. Pensava, satisfeito, "melhor arriscar-me a perder uma quantia pequena próximo a um banco dessa praça a pô-la em um banco. Dinheiro seguro é dinheiro palpável!". Outrossim adorava trocadilhos. Esse era um dos meus melhores. Produzia alguns nas horas vagas, quando vagabundava por achar que já havia "trabalhado demais". Às vezes vangloriava-me iludido, solitário como preferia ser, do título de "o maior convencedor da história dos homens", quando cego à contemplar minhas pequenas riquezas e feitos ao sabor cortante de álcool na língua, precípuo em noites frias. Obviamente, língua era meu forte. Todavia não sabia ler, mas as palavras exerciam-me um fascínio sectário. Dentre meus maiores desejos estava o de decifrá-las.

Por fim, quando realizei o desejo sem o qual não poderia estar revelando-o a ti, li muitos livros. Aprendi miríades palavras novas, aguçadas como minha língua, exóticas como o hábito sujo descrito acima dos homens que não a tem como a tenho, fortes como a inveja que senti por descobrir nas letras escritas em papeis amarelos fedendo a mofo, quando não os brancos novos e cheirosos, homens que convenciam outros melhor. Górgias, Sócrates, Protágoras, Aristóteles, Isócrates, sofistas, religiosos, uma tal de Escola de Frankfurt... enfim, muita gente antes de mim que sabia umas boas sentenças, como proferi-las, convencer com destreza, etc., e escreveram livros falando de tal arte, ainda que não somente sobre ela. Mas os que já se foram tiveram um imenso azar em não poderem beber da minha sabedoria. Garanto-lhe: todos eles podem ser exímios convencedores, intelectuais, etc. Todavia posso ter certeza de que nenhum saberia sobreviver somente de tais erudições.

Há dias, quando estava de vadiação, apareceu-me um sujeito trajando calças esfarrapadas, chinelos de couro desgastado dos lados e no calcanhar, sem camisa, de cabelos longos e barba mal cuidados. Chegou-me com um semblante petrificado, mas não sério ou zangado, apenas cansado e apático. Olhou minha expressão desconfiada, apontou-me o indicador à minha língua, sem tocá-la, porém a poucos centímetros dela, e somente disse sob um sotaque alveolar e numa cálida voz:

-Seu nome agora é Diogenes, o cínico.

E a resposta veio-me espontaneamente, descuidadamente como se tudo não passasse de um daqueles sonhos onde você sabe que está sonhando e "tenta a sorte em qualquer loucura aparecida":

—Bem... está certo nunca tive família, nunca fui batizado, os poucos que me conhecem chamam-me "pobre fingido". "Diogenes" é? Um nome interessante. —Fiz uma curtíssima pausa para rir-me interiormente após refletir num lampejo o que da minha boca antes tão diligente havia saído. Continuei —Aceitarei de bom grado. Agora, se der-me licença, estás a bloquear minha sesta ao sol após o segundo desjejum.

O sujeito ensaiou um sorriso no canto direito de sua boca, contemplou-me por mais quatro segundos, virou-me as costas e saiu caminhando de maneira cambembe. Só quando já ia longe reparei que, quando próximo, o homem cheirava levemente a vinho. Um cheiro de vinho um tanto azedo, um sabor misterioso nunca antes apresentado a mim. Pensei comigo "Esta cidade está cheia de loucos, talvez eu seja um deles, e já não ganho como antigamente. Eu deveria mudar-me para outra e começar a dar umas 'aulas homeopáticas' de minha sabedoria; pagas, claro. Quem sabe até escrever umas besteiras aprendidas nesta vida e ganhar o dinheiro dos livros! Já é tempo de ensejar algum legado.".



PHP

(16/02/2012)
Ps.: Texto SEMPRE passível de edição, então FICA LIKADO! Não toque no seu controle (Qêmerda!)!

I hope everyone like it!

2 comentários:

  1. Não sei como diabos você escreveu isso de uma vez, ficou brilhante seu mf, sério mesmo. No aguardo de mais (afinal já comentamos este em vida real, sem muito o que dizer...)

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  2. Caramba, Pêdo, QUE massa! Apesar de o texto focar mais na mente do narrador do que no cenário, consegui enxergar a cidade e tudo o mais. Keep the good work! Sou muito mais você nos contos. :)

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