"Vermelho. Não, vermelho brandamente alaranjado, com uma nuança de linhas pretas.". Assim pensava ao contemplar o pôr do sol da pequena cidade. Pensamento gratuito? À primeira olhadela, sim, porém havia uma subjetividade sorrindo-lhe maliciosamente, invisível e petulante, por trás dos desarrumados cachos daquele homem que tinha por obrigação escrever um conto ao jornal onde trabalhava. Importava isto: ficar bom, ótimo, excelente; um ruim só serviria à lareira do diretor. Sabia que tinha inspiração, porém demorava a agarrar os instrumentos de trabalho e riscar qualquer artigo seguido de algum nome, ou apenas um substantivo (caso conciso quisesse se apresentar nas linhas introdutórias). A tal inspiração por vezes estava abaixo de sua nuca ou acima de seus óculos; nunca à frente. Não conseguia vê-la, todavia sentia a brincadeira cuja mesma fazia consigo. A pirraça não vinha. Não a via.
Como o ócio o consumisse, ensaiando a conhecida tristeza dos procrastinadores, resolveu pensar em outra coisa. E pensou nela: a ruiva do andar de cima. Morava na mesma pensão que ele, embora a três andares e quatro passos longos completos à frente da escada do quinto andar. Ele contara, paranoicamente... religiosamente! Várias vezes viu a si numa mescla de loucura e vergonha, carregando uma carta recheada com algum lirismo próprio, em direção àquele quarto de um só e tão belo inquilino. Em todas retornara mais rápido ainda no instante do "quase quarto passo longo", portando o papel dessa vez na outra mão. Havia sido encharcado de suor e amassado até criar estrias aleatórias, tamanho o nervosismo e a raiva de si pela covardia. Em pouco tempo retornava ao seu quarto, reunia todo o desgosto e enfiava a cabeça sob uma coberta que lhe provesse o abafamento necessário às suas pragas, "Porquês", e desejos mais inumanos. "Sim, inumanos, pois que sou um animal único apartado da coragem, solitário, no cio, num ciclo, do contrário não estaria repetindo meu sofrer. Sou um escravo de meus próprios instintos, os quais os homens chamam, ébrios, de 'paixões'.". Praguejava mais um pouco. Poucas horas depois deixava de ser bicho amargo e voltava a ser um homem de necessidades menos egoístas, como a de escrever para o jornal.
Enquanto se espreguiçava sentado na cadeira desconfortável que suas economias podiam comprar, ouviu passos na escada. Não os reconheceu, também não era tão tenaz assim sua fixação pela mulher para chegar a tal ponto. Todavia, criou-se em sua mente a esperança de que dela fosse tal barulho cujo carvalho na madeira dos degraus limpos recentemente ajudava a criar. Ainda assim, não correu ao seu encontro. "Se me ver atrás dela, pensa que sou louco, no mínimo pede explicações. E não sou bom em subterfúgios.". Não obstante, sua "loucura" era apenas ser apaixonado pela beleza da mulher. Beleza a qual o fazia decodificar a desconhecida, mesmo sabendo-se suscetível ao erro comum às deduções. Como a moça usava rubros óculos cor de seiva vívida, imaginava-a inteligente, um ser dotado de branda prosa. Capaz de acalmar ou instigar seu coração com falácias sobre literatura ou artes, nas noites onde as estrelas e vaga-lumes juntos excedessem o brilho artificial dos candeeiros das tavernas. Premeditava o cheiro e a maciez das ondulados madeixas vermelhas. "Devem ser tão olentes como...não flores, elogiam-lhes o odor, que para mim sempre foi de mato. Convençãozinha poética desgraçada! Clichê! Seus cabelos devem cheirar a perfume francês. Não, talvez às terras bucólicas irlandesas. É provável que sejam da consistência de uma sedosa bandeira régia holandesa! É isso!". Os olhos... nunca a olhara diretamente neles, posto que a espiava sempre quando podia. De longe notava-se o quão esverdeados eram. Tinham a verdura fresca do musgo das florestas virgens escocesas, e ainda o brilho de uma esmeralda prospectada afortunadamente numa mina europeia. Lançar o olhar à pele alva da moça era como ter uma nostalgia do futuro. Do rosto aos calcanhares, lembrava-lhe a neve ocidental, que nunca vira a não ser por imagens impressas em folhetins náuticos. Reaviva-lhe o desejo pueril de viajar e construir em tais terras frias uma vida ao lado de uma mulher como aquela. Regozijava-se nas epifanias. Tudo nela era a lembrança mais pura da Europa virgem, ainda pouco miscigenada. Apesar de também pensar no severo inverno europeu, não se importava: aprazia-lhe mais o frio e aquela moça do que o calor e quaisquer morenas dissimuladas de sua terra.
Acordou do agradável devaneio quando percebeu o papel anormalmente obumbrado. Tinta havia manchado sua camisa, cotovelo e boa parte da mesa, pois deixou-se inclinar desprevenido sobre o pote pelo torpor imbecil dos que sonham, mas não dormem. Sentiu a revolta subir ao pescoço, onde parou quando, devido à pensão estar deveras vazia àquele horário, ele percebeu o som distante e baixo de uma porta fechando-se. "Ela entrou". "Não queres entrar lá também?". Parou por um instante, surpreso com tal eco de pensamento. Era a voz de sua consciência que o tentava. Um tom de voz subordinado, entretanto demoníaco que o tornou desconfiado, porém sob um efeito inesquivável de sugestão. Então compreendeu que era isso que estava pairando atrás acima de sua cabeça todo o tempo. "A porta é fechada e não há campainhas nos quartos. Provavelmente ela deve estar banhando-se. Não ouvirá a porta caso eu a bata. Não há como". Disse-o mentalmente sem questionar o porquê do comportamento esquizofrênico, quase como que hipnotizado de todo. " No banho? Sim, na banheira! A pele alva, as madeixas vermelhas, os olhos verdes cerrados, tudo sob a água, sob um enxague que emana tentação. Por que não? Use escada para a caixa d'água, depois a janela, tolo! Depois... depois um homem apaixonado saberá o que fazer, ou sofrerá mais uma, duas, três, QUATRO MIL SEMANAS! É hora de decidires se és mero amante gratuito, pisado e escarro da solidão, ou um homem da querença de tê-la em seus braços ". Tais palavras do seu próprio ser confinaram-lhe a própria razão. O homem não venceu a si mesmo, ficou vulnerável, virou uma marionete de uma mera sugestão tão visível como o Deus cristão no inferno.
Seguiu todas as recomendações daquela voz sugestiva, até que deu por si trepado numa janela do quinto andar da pensão, observando seu objeto de desejo banhar-se num chuveiro, de pé sobre uma banheira lisa. Embora perplexo, sem entender direito como chegara a tal nível insano, seus olhos vislumbraram a moça, começando pelos belos cabelos ruivos, fios perfumados e ungidos com água. Na Espanha passariam a ser "Rojos". Depois passou aos brilhantes e meio abertos olhos verdurosos. No momento em que lhe vislumbrou a pele dos róseos seios, ela o percebeu em sua desavergonhez. Arregalou as esmeraldas em pânico e soltou um grito agudo assustado de menina apunhalada mesclado a um suspiro de donzela traída, ao tentar respirar mais ar . Mas não o conseguiu. De tão nervosos em suas vergonhas, escorregaram de onde estavam. Ele da borda da janela na qual segurava para a lança negra e enferrujada de um portão de ferro abaixo. Atingiu-o bem ao meio do tórax, que inutilmente servira àquele organismo para a proteção de um coração latente e amedrontado. Ela na queda aflita bateu a cabeça de encontro ao piso liso da alva banheira molhada. Apagou-se-lhe o brilho das esmeraldas, os cabelos mais vermelhos ficaram, a pele nívea maculou-se do próprio fluído que a corava em momentos tímidos. O rubro vinho da morte cobriu-lhes laconicamente ambos os cenários.
***
O escritor despertou de um sonho profundo e perturbador. Virou a dorida cabeça parcialmente enrijecida pela soneca ao relógio de parede. Viu-o marcar seis horas e trinta e quatro minutos da tarde. Dentro de quase quatro horas precisaria estar com o conto pronto no intuito inexorável de entregá-lo até o fim da madrugada ao diretor da redação, onde trabalhava das dez da noite até as quatro da manhã. E a primeira coisa que pensou para inspirá-lo fora justamente a única de que se lembrava do pesadelo. A que lhe infligia uma peculiar sensação de rasgão no peito. Pensou "Vermelho brandamente alaranjado, não". Concluiu "O rubro vinho da morte".
(PHP)
Madrugada de
29/02/2012
Ps.: Mal tem "Ps" hoje. Só quero dizer que uma Bela inspiração rende frutos magníficos. Quiçá mais diga depois se doces frutos no futuro eu provar de uma inspiração mais contínua. Quanto mais inspira(o)-me, mais oxigênio chega-me a cabeça. Assim melhor penso, assim melhor escrevo.

