"Querida querida,
peço-te perdão por quase duas semanas de sumiço. Meus dois olhinhos de lua, a misantropia não fez deste escritor um analfabeto, o destino escolhido por ele, sim. A acidez do ambiente onde me encontro é terrível e quase não me faz propício o vício comunicativo. Contemplando um céu marrom escuro, onde infelizmente não existem as tantas estrelas que brilhavam refletidas nas tuas órbitas em noites de insônia tua, escrevo-te isto. Bem... pelo menos, ainda que possa estar alienado, penso que escrevo, e assim escrevo, agora, que penso que escrevo. De todo modo, também posso pressupor, tamanha é a escuridão. Falta-me elucidação, quer seja aqui ou lá fora, embora lá haja luz. Quem dera sequer pudesse chegar a elucidações num ambiente tão penumbroso! Aqui o tato, o olfato e a audição são os axiomas. N'alguns momentos senti a insana vontade de arrancar-me os olhos, que me ardem muito do vapor ácido da atmosfera daqui e quase de nada servem em tal escuridão, onde só enxergo no máximo duas ou três cores! Todavia fui privado desta automutilação pela sensatez de pensar no sofrimento agravado devido à perda, à dor, à culpa, à doença e à cicatrização.
Há dias não caía qualquer coisa deste céu marrom. Não creio que possas, com toda a tua classe e anêmico sangue de donzela, chamar fluidos de alguma coisa, todavia é o que o Inverno pegajoso deste céu costuma mandar-me. Tudo que sei é que coisas são umas coisas, e como todas as coisas, servem para alguma coisa, mesmo aqui, onde não há coisa boa alguma a se fazer — Tudo é mera existência. Sombras verdes são o que consigo ver aqui, pois quando se chove, ao contrário dos teus límpidos céus europeus, o céu obumbrado fica claro, como se um tampão de ralo fosse aberto e eu estivesse olhando, insignificante, do fundo deste. Há dois dias resolvi fazer algo mais do que tatear ou esperar seja lá quantas horas tem um dia neste universo e, ainda que tomado de incerteza sobre se lograria algo na absurda empreitada de "poeta desesperado", fiz alguns riscos em algo mais consistente caído e apanhado por mim. Banhei no ácido acumulado no chão uma ponta de alguma coisa a qual pensei ser grama. Desenhava às cegas, como o louco que sou desde que aqui moro, posto que aí fora também.
Devo-te as razões para a transformação deste autor decadente em um misantrópico? Sim, caso esta "carta" ainda tenha a petulância contra eventuais infortúnios de chegar-te. Não, se a última centelha de esperança fátua que me mantém respirante sumir.Porém a biologia do lugar sussurra-me que é possível expelir coisas dele: tenho sonhos (Ora, vejas bem! Tenho sonhos!) sobre existir um esfíncter em algum lugar deste reino. Esporadicamente consigo ouvir algo como uma cachoeira desembocando deveras distante. É este barulho, o qual só ouço em sonho, por vezes também mal acordado, que ainda me mantém sob as asas da loucura de escrever-te.
Lembra-te de nossa fazenda? Foi no pasto dela o começo de tudo. Na verdade, foi no mundo o começo de tudo, de toda alienação e desesperança já existentes, mas só refletidas lendo especificamente uma brochura achada no sótão, numa arca ao lado de uma escrivaninha deteriorada pelas formigas e cupins. Não recordo o nome dela. Curioso. Lembro-me apenas que o sabia pelo menos quarenta minutos antes de aqui vir parar, há...algumas semanas? Não sei. Todavia este pequeno empecilho mnemônico não me impedirá o relato.
Era uma narrativa cinzenta, esfumaçada e civilizada como os céus de uma cidade austríaca industrializada. Iniciava-se mediante um absurdo: um homem-inseto! Em verdade, um ser humano não mais ser humano, transformado em inseto não por algum tipo de feitiço ou praga, mas, creio numa suposição vaga, pelo sono da noite anterior, pois acordava transformado! Acredito que as pessoas comuns de seu mundo ilustre jamais presenciaram tal absurdo em suas realidades! Jamais o poderiam! Poderiam, sim, dizer ao ler o que li: "Doentia a alma do escritor cuja demência moral escreveu isto!". Entretanto, minha Querida, eis um dos motivos, quiçá o primeiro deles apresentado por esta carta, para a minha fuga desta sua realidade: "Põem-lhe antolhos!". O absurdo é uma característica. O absurdo é o arauto da conturbação! O animal mais débil consegue entender e formular resposta para tal. Normalmente a resposta é a fuga. Foge-se do absurdo, por vezes atacam-no, mas sempre na intenção de afastar-se, livrar-se o quanto antes. Generalizam-no. É aí que está o problema. Seus conterrâneos mundanos não têm nem querem ter a característica da minoria que encarara diferentemente o absurdo deste primeiro livro tratado aqui. Uma gigantesca parte de meus irmãos, filhos de Gaia bem como eu, não medita sobre a mais inata característica do absurdo (pois que em todo lado negro há um mais claro noutra margem; que seja, pelo menos, menos negro, ora!): a farsa. O absurdo, essencialmente o deste livro, é um anjo disfarçado propositadamente num demônio perigoso. É Deus pirraça passando-se por demônio, provocando repulsa nos que não enxergam seu cerne, pondo à prova todo tipo de ser cujo coração pulsa e a cabeça oxigena-se. Relatou-se no passado que visões angelicais, a do Gabriel, por exemplo, nada mais eram que um dos eventos de maior caráter atônito presenciáveis na cultura humana. Para os poucos como eu que conseguem ver a outra face astral, o absurdo é um ensinamento. O do homem-inseto é tão somente o disfarce, a casca oca de quitina, para um núcleo cuja pulsação luminosa de linfa verde acoberta "n" verdades da consciência humana.
Eis o enredo: Um homem acorda num dia onde destino algum no universo preestabeleceria a data para um tal acontecimento artrópode. O sujeito não consegue sair da cama de início, perde um pouco do amor de seus familiares e leva consigo inicialmente na aura um miasma de repulsa tímida e conformista, exceto da irmã, a qual procura ajudá-lo de início e por um bom tempo na narrativa assim permanece. Posteriormente, ele perde o emprego e sua vida resume-se às necessidades mais primitivas de um ser eucarionte, adicionadas a vícios por escalar paredes e esconder-se em baixo de coisas. O zoomorfizado continua com neurônios de um ser humano, posto que estes sigam um pútrido destino à medida em que apodrecem junto com o lixo de seu recinto sujo, à proporção da ojeriza desenvolvida paulatinamente por seus familiares devido a atos insectóides, cuja própria natureza responsabilizava-se. A criatura sucumbe aos poucos, como esperado. Moralmente. Fisicamente. A cada par de parágrafos de sua absurda história. Por fim, quando é chegado seu milésimo final, uma folha seca de outono poderia ter sido vista e sobre ela diriam "É mais significante do que esta besta que aqui jaz neste chão empoeirado, pois aquela é sinal do inverno, passagem de ciclo, e este nada mais que um atraso".
O que provoca-te esse enredo? Talvez, inicialmente, desolação... Mais alguns substantivos soturnos ou indiferentes... Poupá-los-ei! Grande perda tola de existência é discursar sobre obviedades mais óbvias que o óbvio! É no homogêneo onde almejo chegar.. A suma conclusão vem depois de uma conclusão. Parece-lhe redundante? A mim só não me parece óbvio. Ponho fé na afirmação de que foram poucos os que chegaram a tal pensamento, talvez possam ser contados na casa dos mil. E mil é pouco? Sim, claro, podem existir mil borboletas, mas se estiverem no chão basta algo pouco maior que uma mão para esmagar talvez dez de uma vez, depois mais dez, mais dez, mais vinte com um par disso ou daquilo... Enfim, a escolha é do dedetizador em função ou do assassino indiferente. Demorará, claro, talvez umas 100 percebam a chacina próxima e fujam, e fujam, e fujam... Daí já não se vão de dez em dez, de vinte em vinte, mas de cem em cem. Sobrevivem separadas, pois, na casa dos cem. Pousam em outro chão, estão cansadas deveras devido à fuga. Mas eis que percebem: já não são um bando suficiente para proteger-se dos predadores, indiretamente, ao alçar voo, almejando a continuidade da espécie na época do acasalamento! Se antes compensava-lhes a perda de trinta e três ou quarenta e quatro para o bico dos pássaros devido à massa viva, que formavam no intuito de dificultar a caça dos alados, agora, com pouco menos de trezentas, seriam extintas facilmente até o último raio de luz agonizante do dia. Às poucas sobreviventes só lhes resta duas opções: 1- Coragem, cumprimento de seus instintos reprodutivos, morte certa em questão de horas. 2- Covardia, sentimento de inutilidade natural ou indiferença, misantropia, morte certa em questão de semanas. É pertinente que as trezentas restantes escolham a primeira. Por quê? Ah! Certamente não acreditarias que borboletas são animais de escolhas, mas, sim, de instinto. Uma destas é una justamente com seu instinto natural, no caso a número 1. Estariam, porquanto governadas pela mãe-natureza, danadas à extinção. Porém a natureza tem suas sublimes exceções, seres perfeitos, magna opera, e é claramente possível que, com sorte, uma delas escolhessem a opção número 2, para correr contra o tempo e espalhar a verdade sobre o niilismo de sua sociedade alada.
Creio que agora saibas, Querida, qual opção escolhi. E se ainda não entendes a pobre metáfora, que tires o envoltório e ponha os miolos das borboletas em nossa sociedade. Já não há tempo para mais nada — Algo neste interior escuro anuncia-me a completude de algumas semanas.
Fraternalmente, com desejos e alegrias irrealizáveis,
Amensal."
*Dedicado a Caroline
*Dedicado a Caroline
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